O amor por entre o verde
Não
é sem freqüência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de
brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no
parque. Ela é uma menina de uns 13 anos, o corpo elástico metido nuns blue
jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho-de-cavalo
que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo,
16, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem
descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos, e
ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se
tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos,
pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais
antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espapaçam sua
verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever
todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade
que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.
Eu
os observo por um minuto apenas para não perturbar-lhes os jogos de mão e
misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem
de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição,
encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como
dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem
vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da
natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios.
Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os
cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se
amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma
brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir,
e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num
longo e meticuloso beijo.
Que
será, pergunto-me eu em vão, dessas duas crianças que tão cedo começam a
praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem
incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros
ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho
moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com
os cabelos presos?
E se prosseguirem se amando, pergunto-me
novamente em vão, será que um dia se casarão e serão felizes? Quando,
satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um
para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que se desviarão o
olhar, para pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que
ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?
É
um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o
ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por
um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de
desencontros, em que freqüentemente aquela que devia ser daquele acaba por
bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por
ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se
nos olhos por um instante e não se reconheceram.
E
é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se
nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não
sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um
rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico
neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que
lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de
mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando
muito além das estrelas.
MORAES, Vinícius. Para viver um grande amor. São Paulo:Círculo do Livro. 1980.
"Os jornais noticiam tudo, menos
uma coisa tão banal que ninguém se lembra: a vida." Citações Nº 41. Rubem Braga
Fonte: Fonte: http://www.roselandia.com.br/imagens/OUTROS402by400/flor_de_maio_3.jpg
Flor de maio
Entre tantas notícias do jornal – o crime do Sacopã, o disco voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro com machado e com foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés – há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os jornais publicaram.
Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta dágua, nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada “flor-de-maio” está, efetivamente, em flor.
Meu primeiro movimento, ao ler essedelicado convite, foi deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonemas a dar, providências a tomar.
Agora, já desce a noite, e as plantas em flor devem ser vista pela manhã ou à tarde, quando há sol – ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no chão.
Suspiro e digo comigo mesmo – que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi – um impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam. Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, não haverá mais “flor-de-maio”, e então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio, e sem outono em maio não sei se em alguma cidade haverá essa “flor-de-maio”.
No fundo a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém – uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a sua única substância, a informação precisa e preciosa: do dia 27 em diante as “flores-de-maio” do Jardim Botânico estão gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico a ver a “flor-de-maio” – talvez com a mulher e as crianças, talvez com a namorada, talvez só.
Ir só, no fim da tarde, ver a “flor-de-maio”; aproveitar a única notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cidade imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo esta perdido, e que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a humanidade possivelmente ainda poderá ser salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.
Rubem Braga “Para gostar de ler – volume 2 – Crônicas”
Coisas Antigas
Já tive muitas capas e infinitos
guarda-chuvas, mas acabei me cansando de tê-los e perdê-los; há anos vivo sem
nenhum desses abrigos, e também, como toda gente sem chapéu. Tenho apanhado
muita chuva, dado muita corrida, me plantando debaixo de muita marquise, mas resistido.
Como geralmente chove à tarde, mais de uma vez me coloquei sob a proteção
espiritual dos irmãos Marinho, e fiz de O Globo meu paraguas de
emergência.
Ontem, porém, chovei demais, e eu
precisava ir a três pontos diferentes de meu bairro. Quando o moço de recados
veio apanhar a crônica para o jornal, pedi-lhe que me comprasse um
chapéu-de-chuva que não fosse vagabundo demais, mas também não muito caro. Ele
me comprou um de pouco mais de trezentos cruzeiros, objeto que me parece
bem digno da pequena classe média, a que pertenço. (Uma vez tive um delírio de
grandeza em Roma e adquiri a mais fina e soberba umbrella da Via
Condotti; abandonou-me no primeiro bar em que entramos; não era coisa para
mim.)
Depois de cumprir meus afazeres voltei
para casa, pendurei o guarda-chuva a um canto e me pus a contemplá-lo. Senti
então uma certa simpatia por ele; meu velho rancor contra os guarda-chuvas
cedeu lugar a um estranho carinho, e eu mesmo fiquei curioso de saber qual a
origem desse carinho.
Pensando bem, ele talvez derive do
fato, creio que já notado por outras pessoas, de ser o guarda-chuva o objeto do
mundo moderno mais infenso a mudanças. Sou apenas um quarentão, e praticamente
nenhum objeto de minha infância existe mais em sua forma primitiva. De máquinas
como telefone, automóvel, etc., nem é bom falar. Mil pequenos objetos de uso
mudaram de forma, de cor, de material; em alguns casos, é verdade, para melhor;
mas mudaram.
O guarda-chuva tem resistido.
Suas irmãs, as sombrinhas, já se entregaram aos piores desregramentos
futuristas e tanto abusaram que até caíram de moda. Ele permaneceu austero,
negro, com seu cabo e suas invariáveis varetas. De junco fino ou pinho vulgar,
de algodão ou de seda animal, pobre ou rico, ele se tem mantido digno.
Reparem que é um dos engenhos
mais curiosos que o homem já inventou; tem ao mesmo tempo algo de ridículo e
algo de fúnebre, essa pequena barraca ambulante.
Já na minha infância era um
objeto de ares antiquados, que parecia vindo de épocas remotas, e uma de suas
características era ser muito usado em enterros. Por outro lado, esse grande
acompanhador de defuntos sempre teve, apesar de seu feitio grave, o costume
leviano de se perder, de sumir, de mudar de dono. Ele na verdade só é
fiel a seus amigos cem por cento, que com ele saem todo dia, faça chuva ou sol,
apesar dos motejos alheios, a estes, respeita. O freguês vulgar e ocasional,
este o irrita, e ele se aproveita da primeira distração para sumir.
Nada disso, entretanto, lhe tira o ar
honrado. Ali está ele, meio aberto, ainda molhado, choroso; descansa com uma
espécie de humildade ou paciência humana; se tivesse liberdade de movimentos
não duvido que iria para cima do telhado quentar no sol, como fazem os
urubus.
Entrou calmamente pela era
atômica, e olha com ironia a arquitetura e os móveis chamados funcionais: ele
já era funcional muito antes de se usar esse adjetivo; e tanto que a fantasia,
a inquietação e a ânsia de variedade do homem não conseguiram modificá-lo em
coisa alguma.
Não sei há quantos anos existe a Casa
Loubet, na Rua 7 de Setembro. Também não sei se seus guarda-chuvas são melhores
ou piores que os outros; são bons; meu pai os comprava lá, sempre que vinha ao
Rio, e herdei esse hábito.
Há um certo conforto íntimo em
seguir um hábito paterno; uma certa segurança e uma certa doçura. Estou
pensando agora se quando ficar um pouco mais velho não comprarei uma cadeira de
balanço austríaca. É outra coisa antiga que tenho resistido, embora muito
discretamente. Os mobiliadores e decoradores modernos a ignoram; já se
inventaram dela mil versões modificadas, mas ela ainda existe na sua graça e
leveza original. É respeitável como um guarda-chuva, e intensamente familiar. A
gente nova a despreza, como ao guarda-chuva. Paciência. Não sou mais gente
nova; um guarda-chuva me convém para resguardo da cabeça encanecida, e talvez o
embalo de uma cadeira de balanço dê uma cadência mais sossegada aos meus
pensamentos, e uma velha doçura familiar aos meus sonhos de senhor só.
Rubem Braga / Novembro, 1957
- Breve biografia: Rubem
Braga nasceu dia 12 de janeiro de 1913, em Cachoeiro do Itapemirim/ES e faleceu
no Rio de Janeiro/RJ em 19 de dezembro de 1990. O escritor é lembrado como
um dos melhores cronistas brasileiros.
“O
brasileiro detesta andar. Só anda a pé por prescrição médica.”
Paulo Mendes Campos
Meu reino por um pente
Filhos - diz o poeta - melhor não tê-los. Já o Professor Aníbal Machado
me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não
ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los.
A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da
vida, e de lá arrancara a certeza imperativa de que a procriação é uma verdade
animal, uma coisa que não se discute, fora de alcance do radar filosófico.
"Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais
importante."
Engraçado é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar a
melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias
Póstumas: "não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa
miséria".
Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o
pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como sabê-lo?
Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável tê-los para
sabê-lo; logo, melhor tê-los.
Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois
de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento
de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as
brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo.
Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o
comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha
cola... Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a
tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para
Minas Gerais, renunciar...
Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz
(talvez seja presunção) de agüentar com relativa indiferença uma hecatombe que
destruísse de vez todos os meus pertences. O que não suporto é a repetição
indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os
quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para
pentear os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da
Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês,
de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor
de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México. A
princípio, pensou que eu estava substabelecendo o comércio dele, comprando para
vender mais caro, mas um dia eu lhe contei minha tragédia familiar, e ele
sorriu e confessou: "Lá em casa é a mesma coisa".
Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para
você, quatro para você - segundo o temperamento e a distração de cada um. Aviso
a todos que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em cada mesa
de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação ostensiva, fico
malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os
cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do exemplar
dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a
família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais ordinário
encontrável na praça, e digo: "Este é o meu pente; este ninguém usa;
neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos
presentes deseja fazer alguma objeção?"
Estão todos de acordo. A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal
qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal, venci, de que
descobri o approach certo para a família incerta.
Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias
passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também
passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco,
com certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no
qual, depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio
da sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: "Um pente,
um pente, meu reino por um pente!".
Eu não fui - diz o primeiro; - eu não fui - diz o segundo; - eu não fui
- diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias e sapatos, não diz
nada, mas abana o rabo negativamente.
Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina.
Minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a
quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro.
Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo.
E sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em
silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los. (de Homenzinho na
Ventania)
- Paulo Mendes Campos nasceu no dia 8
de fevereiro de 1922 em Belo Horizonte – MG e faleceu na cidade do Rio de
Janeiro, Brasil, no dia 1° de julho de 1991. O mineiro foi poeta, tradutor e mais
conhecido por suas crônicas.
Fonte: http://www.rocco.com.br/FotoAutor/AffonsoRomano.jpg
"O professor pensa ensinar
o que sabe, o que recolheu nos livros e da vida, mas o aluno aprende do
professor não necessariamente o que o outro quer ensinar, mas aquilo que quer
aprender." Affonso
Romano de Sant’Anna
Nós,
que matamos Tim Lopes
Você que, numa festa, vai ao banheiro cheirar uma
carreirinha de pó, você matou Tim Lopes.
Você que dá festas elegantes servindo êxtase em
bandejas para seus sorridentes convidados, você matou Tim Lopes.
Você que se encontra com sua turma no bar, fica ali
pela calçada com um copinho na mão, mas dá suas cafungadas, porque isto faz
parte da"nite", você matou Tim Lopes.
Você, ator de teatro e televisão, que manda ver nas
drogas, você matou Tim Lopes.
Você artista e intelectual que curte seu pozinho e
faz elogio de um equivocado conceito de marginalidade estética, você matou Tim
Lopes.
Você jornalista, que curte sua droguinha de vez em
quando, você matou Tim Lopes.
Você músico, que para embalar seus shows entra no
barato, você matou Tim Lopes.
Você policial, que pactua com o crime, que faz vista
grossa e que recebe propinas do tráfico, você matou Tim Lopes.
Você advogado, que defende traficantes, que faz de
tudo para tirá-los de trás das grades, você matou Tim Lopes.
Você juiz relapso, que negligência processos de
traficantes, você matou Tim Lopes.
Você político demagogo e clientelista, que só se
aproxima da favela para tirar votos, você matou Tim Lopes.
Vocês que fizeram essa política recessiva, que abre
empregos no tráfico, vocês mataram Tim Lopes.
Enfim, matamos Tim Lopes todos nós que de maneira
direta e indireta pactuamos com o crime. Porque chegamos a um tempo em que a
participação indireta tornou-se tão infamante quanto a prática direta do
próprio crime.
E não se trata de um exercício do famoso complexo
de culpa judaico-cristão. Trata-se, isto sim, de fazer uma auto-crítica pessoal
e do sistema que engendramos.
O fato é este. Estamos numa guerra. O governo por
inépcia custou a reconhecer isto. Esta guerra já tem mais de 30 anos. Era como
se os nazistas tivessem já invadido a França e o governo francês levasse 30
anos para perceber. Há 22 anos, por exemplo, eu e outros dizíamos que isto já
era uma guerra. E há muito, correndo o risco de ser mal interpretado, dizia que
as Forças Armadas tinham que entrar neste conflito, antes que virássemos
Colômbia.
Numa guerra não há meio termo. Quem fornece munição
ao inimigo está ajudando o outro lado a vencer. Quem dá o seu
"tapinha" eventual está não só fortalecendo o traficante como
ajudando a que tombem outras vítimas - os drogados. Do mesmo modo que há que
traçar novas estratégias bélicas associadas a maciças ações sociais, temos
também que rever nossas posturas éticas e até estéticas.
Dou-lhes um exemplo. No dia em que Tim Lopes foi
assassinado, estava eu no MAM vendo uma exposição de arte contemporânea, que
incluía trabalhos de Hélio Oiticica, artista da vanguarda e da marginalidade
artística nos anos 60 e 70. Na parede, entre suas obras, uma bandeira amarela
com a reprodução da foto do bandido Cara de Cavalo morto e, em cima, uma frase
do artista: "Seja marginal, seja herói".
Houve, portanto, um tempo, tempo recente, quando
esta guerra estava começando em que, em nossa cultura, era um charme louvar o
marginal. O artista se julgava um marginal, um guerrilheiro e procurava neles
pactos ideológicos, éticos e estéticos. Surgiu toda uma cultura
"underground", que se opondo, às vezes heroicamente, ao sistema, fez
uma perigosa aliança com o submundo das drogas. Por contaminação
semântico-ideológica, chegou-se até a criar um tipo de literatura que se chamou
de "literatura marginal". Claro, havia a ditadura para justificar
certas posturas. Mas a contaminação estava feita. E nos dois sentidos. Mesmo os
guerrilheiros presos na Ilha Grande, nos anos 70, reconheceriam que passaram
conhecimentos e táticas de guerrilha para os presos comuns.
Havia ainda a visão romântica de que se
poderia cooptar o marginal para a revolução. Na verdade, estava ocorrendo o
contrário. Os marginais estavam nos cooptando e expandindo seu mercado,
corroendo pelas drogas o sistema até chegarem a se intitular de "partido
revolucionário". Hoje, reconhece-se, são um "estado paralelo". Elias
Maluco e os comparsas que organizam bailes funks onde as letras das músicas
recomendam torturar e queimar opositores, esses, para nosso constrangimento,
adotando a técnica da "apropriação" tão cara à modernidade,
jubilosamente acenam sua bandeira no topo da miséria: "Seja marginal, seja
herói".
Fonte:
http://www.umacoisaeoutra.com.br/cultura/affonso3.htm
"Difícil dizer o que incomoda mais, se a inteligência ostensiva
ou a burrice extravagante.” Stanislaw Ponte Preta
Escovas musicais
Americano inventa
cada coisa legal, né? Tirante foguete, tudo que americano inventa é legal. Vejam,
por exemplo, a fita durex. Durante toda a história da humanidade o embrulho
malfeito foi o horror dos que conduziam objetos debaixo do braço. Vovô
Clorofino — irmão de Tia Zulmira — uma vez passou um vexame no bonde de burro,
por causa disso. Entrou, sentou do lado de uma senhora respeitabilíssima que
era sua vizinha, e botou o embrulho no colo. Foi chato, o embrulho abriu e
apareceram as ceroulas de flanela vermelha, que ele tinha comprado pro inverno.
Se, naquele tempo, já existisse fita durex, Vovô Clorofino não tinha passado
pelo dissabor de ter a peça íntima olhada pela dama respeitável, que, segundo
se dizia, nunca vira as ceroulas do próprio marido (quando Tia Zulmira conta
esta história, Primo Altamirando costuma dizer: "Vai ver o marido não
usava.")
Mas, voltemos aos inventos americanos. Agora mesmo
eles vêm de inventar
escova de dentes musical. Diz que é legal. Trata-se de uma escova que, quando a
gente passa nos dentes, ela toca uma musiquinha, para tornar mais ameno o
hábito da ablução bucal, se nos permitem o termo. A escova, inclusive, ensina o
freguês a escovar
os dentes, isto é, só toca a musiquinha se o cara escovar a dentadura no
sentido vertical, que é como mandam os odontólogos.
Primo Altamirando, para escovar os dentes é mais
duro que o time do Madureira para fazer gols no inimigo. Detesta escovar,
Mirinho. Nestes últimos 36 anos, esta tem sido a grande luta de Tia Zulmira:
fazer o nefando parente escovar os dentes de manhã.
Sabendo disso, mandamos vir dos Estados Unidos a
tal escovinha com música
e ontem fomos entregá-la à velha, lá no casarão da Boca do Mato. Explicamos
como funcionava e esclarecemos que aquilo era uma esperança: talvez, com música,
Mirinho escovasse os dentes.
Tia Zuzu suspirou e explicou que os americanos são
práticos demais e, quando inventam
as coisas, esquecem que existem pessoas excepcionais. E, num desabafo:
— Escova de dentes com música não vai fazer Mirinho
mudar de hábito. Aquele cretino, além de porco, é surdo.
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Fonte: O MELHOR DE STANISLAW
- Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti -
Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio
Editora.
Fonte:
http://cifrantiga.blogspot.com/2011/10/escovas-musicais.html
Porque despedi minha secretária, de
Stanislaw Ponte Preta
Era
meu 45º aniversário e eu não estava lá essas coisas naquela manhã. Dirigi-me à
copa para o café, na expectativa de que minha mulher alegre, diria: “Feliz
aniversário, querido!” Porém, ela nem ao menos disse bom dia. Pensei: “Essa é a
mulher que você merece.” Imaginei que certamente as crianças lembrariam, porém
chegaram para o café e não disseram uma palavra.
Já
estava bastante desanimado, mas eu senti um pouco melhor quando entrei no meu
escritório e Janete, a secretária disse: “Bom dia chefe, feliz aniversário!”
Finalmente alguém havia se lembrado. Trabalhei até o meio dia, quando Janete
entrou em minha sala dizendo: “Poderíamos almoçar juntos, só o senhor e eu.”
Fomos a um lugar bastante reservado, no campo. Nós divertimos muito e no
caminho de volta ela sugeriu: “Chefe, com esse lindo dia, acho que não devemos
voltar ao escritório. Vamos até meu apartamento e lá tomaremos um drinque.”
Dirigi-me, então, para o escritório dela e enquanto eu saboreava um Martini,
ela disse: “Chefe, se não se importa eu vou até seu quarto vestir uma roupa
mais confortável.” “Tudo bem.”- respondi. “Fique à vontade.”
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Vamos recortar essa parte:
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Decorridos
mais ou menos 6 minutos ela saiu do quarto carregando um bolo enorme, seguida
pela minha mulher e meus filhos, todos cantando “parabéns a você.” E lá estava
eu, sentado na sala, sem nada além das minhas meias.
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Breve biografia: Sérgio Marcus Rangel Porto nasceu no Rio de janeiro em 11 de janeiro de 1923
e faleceu Rio de Janeiro em 30 de setembro de 1968. Foi cronista, escritor, radialista e compositor brasileiro. Ele era mais conhecido por seu pseudônimo Stanislaw Ponte Preta.
Resumo de Sagarana - O Burrinho Pedrês
Livro Sagarana: conto O Burrinho Pedrês, de Guimarães Rosa
Enredo
A trama desse conto, como nas demais narrativas de Guimarães Rosa, é relativamente simples. O velho burrinho Sete-de-Ouros, por falta de outras montarias, é engajado para levar uma boiada vendida pelo dono da fazenda, o major Saulo. Durante a viagem, ficamos sabendo que o vaqueiro Silvino quer matar o vaqueiro Badu, por causa de uma moça. Francolim, que é uma espécie de ajudante-de-ordens do major, denuncia a briga ao patrão, mas nada é feito para evitá-la.
Silvino chega a provocar um acidente, com o intuito de fazer os bois atropelarem Badu. Quando vê que não consegue matá-lo desta forma, planeja fazê-lo pessoalmente, na viagem de volta, depois de atravessarem o ribeirão cheio pelas chuvas. Nesse retorno, Badu está bêbado. Por isso, os demais vaqueiros deixam-no com o burrinho Sete-de-Ouros. Ao atravessarem o ribeirão, morrem na enchente oito vaqueiros, inclusive Silvino. Badu é salvo heroicamente pelo Sete-de-Ouros, que consegue chegar à outra margem e ao descanso merecido. Traz, vitorioso, o bêbado apaixonado na sela e Francolim agarrado no rabo...
Personagens
1. Sete-de-Ouros: animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho.
2. Major Saulo: corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro, comprando mais gado e terras.
3. João Manico: vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte.
4. Francolim: espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros. Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-Ouros.
5. Raymundão: vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai contando a história do zebu Calundu.
6. Zé Grande: vai à frente da boiada, tocando o berrante.
7. Silvino: vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois de deixarem a boiada no arraial.
Cenário
Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.
Análise
Em Sagarana renasce o anônimo "contador de estórias", o homem-coletivo que se enraíza nos rapsodos gregos e nas canções de gesta medievais. Desde o início do conto (Era um burrinho pedrês...) esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea da "palavra lúdica", que não aprisiona o falar nos limites rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra anônima e coletiva.
Seja pela fórmula lingüística caracterizadora da narrativa elementar, da fábula, da lenda (Era um burrinho...), tempo e modo verbais que, de imediato, tiram à narrativa o caráter de coisa datada, para projetarem na esfera intemporal do universo de ficção; seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão); seja pela dimensão antropomórfica (forma humana) que é dada à personagem central, o "burrinho-gente", e que situa a narrativa na fronteira entre o real e o mágico; seja pela funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo, tudo isso e muito mais nos revela, no universo da palavra rosiana, a presença do "homo ludens" (homem lúdico), descompromissado com as estruturas convencionais do pensamento lógico.
Leia mais:
Fonte: http://www.vestibulandoweb.com.br/analise_obra/sagarana-burrinho-pedres.asp
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“O mundo é como um espelho que devolve a cada
pessoa o reflexo de seus próprios pensamentos. A maneira como você encara a
vida é que faz toda diferença.” Luis Fernando Veríssimo
Flagrante de Praia
Ela
(jovem, linda, sozinha) acabou de passar óleo para bronzear nos braços, depois
de passar nas pernas, no colo e no rosto. Olhou em volta. A poucos metros dela,
sentado na areia, um homem lia um jornal. Ninguém mais por perto. Ela examinou
o homem com cuidado. Tinha aliança? Tinha. Casado. Seus trinta, trinta e cinco
anos. Não era feio, apesar do seu nariz um pouco comprido. Ela falou:
_
Por que você estava me olhando?
Ele
virou-se para ela surpreso:
_
Falou comigo?
_
Por que você estava me olhando?
_
Perdão. Eu não estava olhando para você.
_
Por que não?
Ele
riu, sem saber o que dizer.
Ela
continuou:
_
O que você está querendo?
_
Eu? Nada.
_
Tem certeza?
_
Eu posso lhe assegurar que...
_
Nada mesmo?
_
Nada. Juro.
_
Você não estava imaginando que o destino deve ter nos colocado aqui, lado a
lado na mesma praia, com alguma intenção? Você nem sonhou em me dirigir a
palavra? Em me convidar para um programa? Em começar um caso?
_
Não. Juro que não.
_
Você me acha repelente?
_
Não. O que é isso. É que...
Lá
vem confidência, Pensou ela. Ele vai me dizer que é homossexual ou impotente. Ou,
meu Deus! Que a mulher dele morreu ontem! Mas ele apenas disse:
_
Olhe, a última coisa que eu quero agora é um envolvimento emocional, entende?
Não me leve a mal. Você é uma garota muito atraente, mas eu simplesmente não
estou a fim.
Perfeito,
pensou ela. Só mais uma pergunta:
_
A sua mulher está por perto?
_
A minha mulher? Não.
Perfeito.
Ela levantou-se, caminhou até onde ele estava, sentou-se ao seu lado e pediu:
_
Me passa óleo nas costas?
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9wvgcBu_GrIaLCz-27XIc7R7HpvOefD18Ou5TOUrTRoZdCQdsWfxShNP53trGoc3EZ65WErTFoGyT_sKKLcp14TGCCRSTAAKzbjZWsZpewWLDCS9r_kY1FsbRXgmzyNFT7sY4JPz0RYd0/s400/assalto.gif
O Assalto,
de Luís Fernando Veríssimo
Quando
a empregada entrou no elevador, o garoto entrou atrás. Devia ter uns dezesseis anos,
dezessete anos. Preto. Desceram no mesmo andar. A empregada com o coração
batendo. O corredor estava escuro e a empregada sentiu que o garoto a seguia.
Botou a chave na fechadura da porta de serviço, já em pânico. Com a porta
aberta virou-se de repente e gritou para o garoto:
–
Não me bate!
–
Senhora?
–
Faça o que quiser, mas não me bate!
–
Não senhora, eu… A dona da casa veio ver o que estava havendo. Viu o garoto na
porta e o rosto apavorado da empregada e recuou, até pressionar as costas na
geladeira.
–
Você está armado?
–
Eu? Não.
A
empregada, que ainda não largara o pacote de compras, aconselhou a patroa sem
tirar os olhos do garoto:
– É
melhor não fazer nada, madame. O melhor é não gritar.
– Eu
não vou fazer nada, juro! – disse a patroa, quase aos prantos. – Você pode
entrar. Pode fazer o que quiser. Não precisa usar de violência.
O
garoto olhou de uma mulher para a outra. Apalermado. Perguntou:
– Aqui é o 712?
– O
que você quiser. Entre. Ninguém vai reagir.
O
garoto hesitou, depois deu um passo para dentro da cozinha. A empregada e a
patroa recuaram ainda mais. A patroa esgueirou-se pela parede até chegar à
porta que dava para a saleta de almoço. Disse:
– Eu
não tenho dinheiro, mas meu marido deve ter. Ele está em casa. Vou chamá-lo.
Ele lhe dará tudo.
O
garoto também estava com os olhos arregalados. Perguntou de novo:
–
Este é o 712? Me disseram que era para pegar umas garrafas no 712.
A
mulher chamou com voz trêmula:
–
Henrique!
O
marido apareceu na porta do gabinete. Viu o rosto da mulher, o rosto da
empregada e o garoto e entendeu tudo. Chegou à hora, pensou. Sempre me indaguei
como me comportaria no caso de um assalto. Chegou a hora de tirar a prova.
– O
que você quer? – perguntou, dando-se conta em seguida do ridículo da pergunta.
Mas sua voz estava firme.
– Eu
disse que você tinha dinheiro – falou a mulher.
– Faço um trato com você – disse o marido ao
garoto – dou tudo de valor que tenho em casa, contanto que você não toque em
ninguém.
E se
as crianças chegarem de repente? Pensou a mulher. Meu Deus, o que esse bandido
vai fazer com as minhas crianças? O garoto gaguejou:
–
Eu… eu… é aqui que tem umas garrafas para pegar? (...)
–
Não é para agradar, mas eu compreendo você. Você é uma vítima do sistema. Deve
estar pensando: “Esse burguês cheio da nota está querendo me conversar”, mas
não é isso não. Sempre me senti culpado por viver bem no meio de tanta miséria.
Pode perguntar para minha mulher. Eu não vivo dizendo que tenho casa. Não somos
ricos. Somos, com alguma boa vontade, da classe média alta. Você tem razão. Qualquer
dia também começamos a assaltar para poder comer. Tem que mudar o sistema.
Tome.
O
garoto pegou o dinheiro meio sem jeito.
–
Olhe, eu só vim pegar as garrafas…
–
Sônia, busque as suas joias. Ou melhor, vamos todos buscar as joias. Os quatros
foram para a suíte do casal. O garoto atrás. No caminho ele sussurrou para a empregada:
–
Aqui é o 712? Me disseram para pegar umas garrafas…
–
Nós não temos mais nada, confie em mim. Também somos vítimas do sistema.
Estamos do seu lado. Por favor, vá embora! (O
analista de Bagé. Porto Alegre, L& PM, 1981.)
Explorando o texto
1. Por que a empregada entrou em pânico?
2. Por que a palavra “preta” aparece isolada no período?
3. Sem que ninguém dissesse nada, a patroa concluiu que era um assalto.
Por quê?
4. “O marido apareceu na porta do gabinete. Viu o rosto da mulher, o
rosto da empregada e o garoto e entendeu tudo.” Com base em que o marido
poderia “entender tudo”?
5. Você acha que as pessoas têm motivos para viver assim assustadas
atualmente? Por quê?
6. Em sua opinião, de quem foi a Maior falha em toda essa história? Por
quê?
7. Que crítica social se depreende do texto? Explique-a.
8. Quanto ao gênero literário, como você classifica esse texto?
Explique.
9. Por que, sobretudo, nas grandes cidades, as pessoas são tão precipitadas?
Que tal conhecer as obras sugeridas abaixo?
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9xGOFf6k3FhpvT8A2RBUCiEMxQRS65Bk0aWLEQyHEdOShLGPTZGldRgtUw2S6gxwhdgAxqBgYri0a8JxX0hTfJDjAcSzih4dTJGfreKDPNvM8yKKvgRgk54_aIIQlmJfQFswW0neeoGU/s1600/luis_fernando_verissimo_livros.jpg
Breve biografia: Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre
no dia 26 de setembro de 1936. É mais conhecido por suas crônicas e textos de humor ligada as sátiras de costumes publicadas em jornais. Ele também cartunista, tradutor e roteirista de televisão, além de autor de teatro e romancista bissexto.Já foi publicitário e copy desk de jornal, e ainda, músico, inclusive tocando saxofone
em alguns conjuntos. Ele é um dos mais populares
escritores brasileiros contemporâneos. É importante destacar que é filho do escritor Érico Veríssimo.
“O valor das coisas
não está no tempo que elas duram,
mas na intensidade com
que acontecem.
Por isso existem
momentos inesquecíveis,
coisas inexplicáveis e
pessoas incomparáveis.” Fernando Sabino
Na escuridão Miserável, Fernando
Sabino
Eram sete horas da noite quando entrei no
carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o
motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de
um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de
uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente, encostada ao poste como um
animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco,
abaixando o vidro:
-O que foi, minha filha? - perguntei,
naturalmente pensando tratar-se de esmola.
-Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.
-O que é que você está me olhando aí?
-Nada não senhor - repetiu. - Esperando o bonde...
-Onde é que você mora?
-Na Praia do Pinto.
-Vou para aquele lado. Quer uma carona?
Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:
-Entra aí, que eu te levo.
Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e
enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para a frente, não ousava
fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:
-Como é o seu nome?
- Teresa.
- Quantos anos você tem, Teresa?
-Dez.
-E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?
-A casa da minha patroa é ali.
-Patroa? Que patroa?
Pela sua resposta pude entender que trabalhava na
casa de uma família no Jardim Botânico: lavava, varria a casa, servia a mesa.
Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.
-Hoje saí mais cedo. Foi
jantarado.
-Você já jantou?
-Não. Eu almocei.
-Você não almoça todo dia?
-Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida para
mim.
-E quando não tem?
-Quando não tem, não tem - e ela até parecia
sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de
criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não
me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo
na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de
sentimentalismo burguês.
-Mas não te dão comida lá? -
perguntei, revoltado.
- Quando eu peço eles me dão. Mas descontam no
ordenado, mamãe disse pra eu não pedir.
-E quanto você ganha?
-Mil cruzeiros.
-Por mês?
Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro,
tomado de indignação. Meu impulso era voltar, bater na porta da tal mulher e
meter-lhe a mão na cara.
-Como é que você foi parar na casa dessa... foi
parar nessa casa? - perguntei ainda, enquanto o carro,
ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela
disparou a falar:
-Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as
compras e aí noutro dia pediu à mamãe pra eu trabalhar na casa dela então mamãe
deixou porque mamãe não pode ficar com os filhos todos sozinhos e lá em casa é
sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço,
brigado.
Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou,
saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto.
A
companheira de viagem. 4.ed. Rio de Janeiro, Record, 1977. p.135-7.
Vocabulário:
mirrado: muito magro, definhado;
raquítico: pouco desenvolvido, franzino;
jantarado ou ajantarado: refeição servida depois da hora habitual do
almoço para suprimir o jantar;
esquálido: sujo, desalinhado;
Praia do Pinto: praia da Lagoa Rodrigo de Freitas, local onde havia uma
grande favela, hoje extinta.
Interpretação
1) O texto é narrado em primeira ou
em terceira pessoa? Transcreva um verbo do primeiro parágrafo que justifica sua
resposta.
2) Assim que foi sair do carro, o narrador notou que estava sendo observado
por alguém. Quem era? Descreva essa pessoa.
3) Por que a garota hesitou em aceitar a carona oferecida pelo narrador?
4) Qual era o trabalho da menina? Quantas horas trabalhava por dia?
5) Como era tratada a menina na casa em que trabalhava?
6) Qual a diferença entre a menina e os filhos do autor?
7) Qual foi a reação do narrador quando soube o salário da menina?
8) “Dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho...” “...
encostada ao poste como um animalzinho...” Por que o narrador compara a menina
a um bicho e a um animalzinho?
9) A menina disse que tinha 10 anos, mas o narrador achou que ela
tivesse apenas 7. Que fatores o levaram a pensar isso?
10) Resuma numa única frase o assunto tratado no texto.
11) Qual foi o objetivo do autor ao relatar esse fato? Será que ele só
quis contar algo que deve ter acontecido com ele ou teve intenção de demonstrar
algo mais do que isso? Diga o que você pensa.
12) Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil, a idade
mínima para admissão ao trabalho é 14 anos. No entanto, há no Brasil cerca de
2,9 milhões de trabalhadores entre 10 e 14 anos. Por que você acha que isso
ocorre?
13) Há neste texto Figuras de
Linguagens? Identifique.
14) No texto aparecem dois tipos de
linguagem: uma culta e outra informal. Transcreva o trecho onde aparecem
15) O autor não pontuou a fala da
menina. Qual foi a intenção do autor utilizando este recurso?
16) Na fala da menina, além da ausência
da pontuação, existe um erro de grafia e um erro de concordância.
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